A igreja enfrenta seus demônios - Parte 1
O Vaticano reconhece a existência do diabo em suas fileiras. E prepara seu exército para contra-atacar a presença do mal
João Loes e Rodrigo Cardoso
A igreja enfrenta seus demônios: o
repórter João Lóes comenta a matéria de capa da IstoÉ desta semana,
sobre a presença do mal no Vaticano
O exorcista-chefe do Vaticano, Gabriele
Amorth, espantou o mundo na semana passada ao declarar, alto e bom som,
que “o demônio está à solta no Vaticano”. A justificativa para tal
desabafo, que macula a residência oficial dos católicos com a fumaça do
diabo, foram os inúmeros e incômodos casos de pedofilia envolvendo
religiosos e o atentado ao papa Bento XVI no Natal do ano passado. Casos
recentes não faltam para sustentar a indigesta frase do padre Amorth,
que já tem 85 anos e dedicou os últimos 25 à realização de 70 mil
rituais de expulsão do diabo do corpo de fiéis atormentados. Na
Alemanha, por exemplo, surgiram denúncias de abusos feitos contra
meninos dentro do milenar coral Regensburger Domspatzen, administrado
até 1994 pelo irmão do papa, Georg Ratzinger. No Chile, um padre
espanhol da Congregação de Clérigos de São Viator foi preso com 400
horas de vídeos que continham pornografia infantil, boa parte produzida
pelo próprio sacerdote. Já no Brasil, dois monsenhores e um padre da
cidade de Arapiraca, Alagoas, foram acusados de abusar sexualmente de
seus coroinhas. “Quando se fala de Satanás dentro do Vaticano, é de
casos como esses que está se falando”, reitera o exorcista. Para Amorth,
o diabo existe, não é uma entidade subjetiva ou simbólica, e precisa
ser enfrentado. E o que poderia ser tratado como um arroubo medieval em
outras épocas hoje ganha força considerável com um lobby de peso: o do
próprio papa Bento XVI, que acredita no demônio e defende a volta dos
rituais de exorcismo.
“Quando se fala na fumaça de Satanás no Vaticano, é de
casos de pedofilia e violência na Igreja que está se falando”
Padre Gabriele Amorth, exorcista-chefe do Vaticano
O sumo pontífice quer criar um exército de
sacerdotes exterminadores de demônios pelo mundo, mas tem uma tarefa
árdua pela frente. Tanto o diabo quanto os exorcistas estão fora de moda
pelo menos desde o século XX. Até mesmo entre os católicos, leigos e
religiosos, que consideram muito caricata e teatral a figura demoníaca e
preferem subjetivar o mal, deixando-o, assim, mais palatável para o
racionalismo vigente. Com o advento da psiquiatria e os avanços da
medicina, muito do que se atribuía ao diabo passou a ser explicado e
remediado pela ciência. Desvios como os dos padres do coral Regensburger
Domspatzen e dos brasileiros de Arapiraca ganharam nome de sintomas
psiquiátricos. Até quem se diz possuído pelo demônio já tem diagnóstico
reconhecido pela quarta edição do manual de diagnóstico e estatística
das perturbações mentais, publicado em 1994 – a pessoa seria vítima de
um “Transtorno Dissociativo Sem Outra Especificação”. A Satanás, cuja
própria existência foi colocada em dúvida, sobrou o papel de
representação simbólica do mal. Enquanto isso, o ofício de exorcista, em
baixa, parou de atrair seminaristas. Com o tempo, um corpo de
religiosos majoritariamente ignorante no assunto se estabeleceu na
hierarquia clerical. “A quase totalidade do episcopado católico nunca
fez exorcismos nem assistiu a um ritual”, acusa o padre Amorth. Também
boa parte dos bispos, responsáveis pela investidura do cargo de
exorcista oficial a um dos sacerdotes de suas dioceses, abandonou a
obrigação. Muitos não acreditam sequer na existência do demônio.
Bento XVI começou a tentar reverter esse
quadro a partir de 2005. Mas daí a mudar a Igreja, que é um dos
organismos mais burocráticos e avessos à transformação que existem, há
um longo caminho. Em seus discursos e documentos, constam referências
diretas a uma série de pilares teóricos do catolicismo que ele pretende
retomar. Entre eles está, por exemplo, o reconhecimento da existência do
demônio como um espírito do mal que se manifesta de forma objetiva nas
atitudes dos homens. E se as ondas dessas orientações teóricas demoram
para reverberar sobre a pesada estrutura clerical, nas costas dos fiéis
elas parecem ter chegado com a força de um tsunami. “Temos visto um
aumento na procura por exorcismos. As pessoas estão claramente mais
sensíveis à influência do diabo”, afirma Ana Flora Anderson, socióloga e
biblista vinculada à Cúria Metropolitana de São Paulo. A tese é apoiada
pelo frei italiano Elias Vella, autor de “O Diabo e o Exorcismo”
(Editora Palavra & Prece). Ele reconhece que, entre os anos 1970 e
1990, houve uma calmaria nos casos de possessão. “Hoje, os problemas
demoníacos voltaram com força”, disse à ISTOÉ o religioso, que também
foi exorcista. A igreja agora corre para suprir a crescente demanda, em
meio a uma grave crise de vocações e uma diminuição do número de padres
no mundo.
“A Igreja precisa se organizar para capacitar seus padres e fiscalizar melhor quem faz exorcismos”
Padre Gabriele Nanni, exorcista oficial da Diocese de Roma, que dá cursos para outros sacerdotes pelo mundo
Um retrato do descompasso que há hoje entre
as necessidades dos fiéis e o despreparo do clero está sintetizado no
livro “The Rite” (“O Rito”, em tradução livre), lançado em 2009 pelo
jornalista americano Matt Baglio. Repórter free lancer na Itália, ele
resolveu acompanhar um padre dos Estados Unidos durante um curso para
formar exorcistas ministrado pela prestigiada Pontifícia Universidade
Regina Apostolorum, em Roma, vinculada ao Vaticano. “Achei estranho
existir um programa de estudos como esse em pleno século XXI”, afirma.
“Mas considerei ainda mais espantoso descobrir que muitos dos padres que
estavam lá não tinham ideia do que era o demônio e como se fazia um
exorcismo.” Baglio lembra ainda que os calouros se diziam marginalizados
pela comunidade religiosa de onde vieram por manifestar interesse por
assunto tão controverso.