O homem que se deixou morrer
Orlando Zapata Tamayo, pedreiro e
encanador negro finou-se às 13 horas do dia 23 de fevereiro de 2010 aos
42 anos de idade, após 82 dias de greve de fome reivindicando melhores
condições carcerárias no Presídio Combinado del Este em Havana. O
governo cubano deteve-o em março de 2003 acusando-o de “desordem pública
e desacato” (fazia outra greve de fome a favor de presos políticos) e
em sucessivas penas condenou-o a 36 anos de prisão. A Anistia
Internacional incluiu-o na lista de “prisioneiros de consciência”. O
presidente Lula em visita oficial à ilha, mostrando uma crueldade da
qual os brasileiros não o sabiam capaz, acusou-o de “deixar-se morrer”,
num julgamento duríssimo a quem lançou mão do próprio corpo como a única
forma de protesto que ainda lhe era possível fazer. Não se sabe se
Zapata era católico, ateu ou tinha crenças de raiz. As religiões aceitam
e com freqüência estimulam o martírio e a autoimolação. Cristo tinha
consciência do que o esperava quando caminhou para a cruz e Gandhi optou
pela greve de fome ao criar o movimento de resistência passiva aos
poderosos na sua luta pelos pobres da Índia. O catolicismo formalmente
condena a greve de fome, considerando-a como uma forma de suicídio
direto, mas seus fiéis costumam valer-se dela quando todas as demais
possibilidades se esgotam, como no caso de Frei Leonardo Cappio ao se
opor às decisões terminais sobre a transposição do rio São Francisco.
Membros do Exército Republicano Irlandês (IRA) que em 1923 permaneciam
nas celas da prisão de Montjoy após o final da guerra civil que criou o
Estado Livre da Irlanda fizeram uma greve de fome que chegou a envolver
oito mil prisioneiros e resultou em duas mortes antes de ser suspensa.
Firmou-se a partir daí uma longa tradição entre os irlandeses de
entregar a vida por causas que parecem impossíveis de terem êxito de
outra forma. O filme “Hunger” de Steve McQueen (2008) conta as
derradeiras seis semanas de Bobby Sands que, junto a outros oito
ativistas católicos do IRA, morreu após 66 dias em greve de fome na
prisão de Maze, ao norte da Irlanda, por status político negado por
carcereiros protestantes ingleses. A resistência, encenada em
extraordinária performance pelo ator Michael Fassbender, tornou-se um
ponto de referência na história do país.
Até onde vai o direito do indivíduo de recusar-se a comer? Não há, nos códigos penais brasileiros, qualquer penalização nem aos grevistas de fome nem aos suicidas (a OAB tem defendido os direitos dos grevistas). A greve de fome é uma forma de oposição passiva descrita em livro por Gene Sharp (“The methods of non-violent action” ou “Poder, luta e defesa” - Ed. Paulinas) que lista 198 métodos de não cooperação social e política, boicotes e intervenções não violentas para opor-se a quem se utiliza de violência para oprimir aos demais. Tanto os carcereiros quanto os médicos só podem intervir nos últimos momentos. O artigo 26 do novo Código de Ética Médica estabelece que é vedado ao médico “deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada apta física e mentalmente, em greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente, devendo cientificá-la das prováveis complicações de jejum prolongado e, na hipótese de risco eminente de morte, tratá-la”. Hélio Schwarstman, no artigo exemplar “Censura química” (Folha, 17/11/05) argumenta que, ao autorizar a intervenção no momento em que o paciente já não tem forças para resistir, alimentando-o contra vontade e frustrando todo o seu protesto, o Código na verdade nega o direito à greve de fome. Esta é uma expressão de autodeterminação, de controle último sobre as próprias condições de vida num contexto de relacionamento no qual um sujeito está subordinado ao outro, como escrevem Gurcan Coçan e Ahmet Oncü numa análise sobre uma prática que tem sido relativamente comum nas prisões turcas, onde o exemplo irlandês frutificou.
A morte de Zapata Tamayo abre o caminho a novos candidatos a mártires. Guillermo Fariñas, jornalista independente, 48 anos, faz jejum em casa há três semanas pedindo que o regime cubano liberte 26 presos políticos que estariam seriamente enfermos. A diplomacia brasileira, pega de surpresa numa passagem por Havana que parecia tão pacata quanto as anteriores, agora se esforça para explicar o apoio ao Irã de Ahmadinejad na visita a Israel. Para piorar as coisas, ao invés de evitar o assunto, Lula resolveu comparar a situação de quem está numa prisão em Cuba porque discorda do sistema nacional de governo com as de traficantes e criminosos comuns detidos em cárceres de São Paulo. Os dois lados ficaram ofendidos. Ninguém se deixa morrer, mas é capaz de entregar a vida por uma causa que considere justa.
Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional
Até onde vai o direito do indivíduo de recusar-se a comer? Não há, nos códigos penais brasileiros, qualquer penalização nem aos grevistas de fome nem aos suicidas (a OAB tem defendido os direitos dos grevistas). A greve de fome é uma forma de oposição passiva descrita em livro por Gene Sharp (“The methods of non-violent action” ou “Poder, luta e defesa” - Ed. Paulinas) que lista 198 métodos de não cooperação social e política, boicotes e intervenções não violentas para opor-se a quem se utiliza de violência para oprimir aos demais. Tanto os carcereiros quanto os médicos só podem intervir nos últimos momentos. O artigo 26 do novo Código de Ética Médica estabelece que é vedado ao médico “deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada apta física e mentalmente, em greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente, devendo cientificá-la das prováveis complicações de jejum prolongado e, na hipótese de risco eminente de morte, tratá-la”. Hélio Schwarstman, no artigo exemplar “Censura química” (Folha, 17/11/05) argumenta que, ao autorizar a intervenção no momento em que o paciente já não tem forças para resistir, alimentando-o contra vontade e frustrando todo o seu protesto, o Código na verdade nega o direito à greve de fome. Esta é uma expressão de autodeterminação, de controle último sobre as próprias condições de vida num contexto de relacionamento no qual um sujeito está subordinado ao outro, como escrevem Gurcan Coçan e Ahmet Oncü numa análise sobre uma prática que tem sido relativamente comum nas prisões turcas, onde o exemplo irlandês frutificou.
A morte de Zapata Tamayo abre o caminho a novos candidatos a mártires. Guillermo Fariñas, jornalista independente, 48 anos, faz jejum em casa há três semanas pedindo que o regime cubano liberte 26 presos políticos que estariam seriamente enfermos. A diplomacia brasileira, pega de surpresa numa passagem por Havana que parecia tão pacata quanto as anteriores, agora se esforça para explicar o apoio ao Irã de Ahmadinejad na visita a Israel. Para piorar as coisas, ao invés de evitar o assunto, Lula resolveu comparar a situação de quem está numa prisão em Cuba porque discorda do sistema nacional de governo com as de traficantes e criminosos comuns detidos em cárceres de São Paulo. Os dois lados ficaram ofendidos. Ninguém se deixa morrer, mas é capaz de entregar a vida por uma causa que considere justa.
Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional