Uma em cada cinco mulheres já fizeram aborto no Brasil
Jornalistas percorreram capitais brasileiras para investigar a prática do aborto em clínicas clandestinas.O repórter Eduardo Faustini e uma produtora do Fantástico fingem que são um casal que precisa de um aborto clandestino para interromper quatro semanas de gestação. Sem saber que está sendo gravada, a recepcionista presta todas as informações.
Ela explica o procedimento: “São R$ 400 para fazer a interrupção nesse período. O que o doutor faz é a curetagem. Ele tira o saco gestacional e faz a limpeza do útero. Isso é uns dez, cinco a dez minutos”.
“A curetagem é um método que utiliza pinças metálicas. São muito rígidas e são introduzidas no interior do útero. Elas podem simplesmente perfurar a parede uterina”, explica o professor da Universidade de Fortaleza, Helvécio Feitosa.
Os policiais se sentem em casa. Felizes da vida veem televisão. A gravação foi feita durante a Copa do Mundo. Era uma quarta-feira e a seleção brasileira jogaria na sexta. Eles querem saber se o médico que é dono da clínica vai trabalhar no dia do jogo.
No Rio de Janeiro, procuramos uma clínica no bairro de Bonsucesso. Fingindo que são mãe e filha, duas produtoras buscam informações sobre uma clínica de aborto. Ana Paula é o contato do estabelecimento, que mudou de endereço. Ela não sabe que está sendo gravada. Ela prefere informar o endereço pelo telefone. E informa que a gestante tem que apresentar na clínica o resultado do exame de ultrassonografia.
Depois do primeiro contato, a produtora telefona para Ana Paula para saber qual é o método do aborto. Ela explica: “É aquele método que suga. Vai sangrar um pouquinho, depois deve parar. Aí, para mês que vem a menstruação dela volta normalmente. Não tem risco. Com certeza”.
“O método da sucção, normalmente você tem um aspirador. A pressão negativa aspira o que tem dentro do útero, há o risco de perfurá-lo. Esses procedimentos podem ter complicações seríssimas”, afirma o professor da Universidade de Fortaleza.
Em Belém voltamos ao consultório do médico Fernando Guarani, em um prédio da capital do Pará. Sem saber que está sendo gravado, ele explica os procedimentos ao repórter Eduardo Faustini e a uma produtora que finge estar grávida:
“Bom, para lhe tranquilizar, esse é um tipo de problema, um tipo de solução que não tem risco. É altamente seguro. Não tem problema nenhum, assim pode ficar tranquila. A curetagem é R$ 800, a sucção é R$ 1.200 e a vácuo é R$ 1.800. Qualquer uma das três a gente faz para você, e todas as três resolvem seu problema”.
Agnês de Sousa Lemos tinha 26 anos e dois filhos quando teve o útero e o intestino perfurados em dezembro do ano passado. Estava grávida de cinco meses e procurou uma aborteira, que trabalhava em uma casa na região metropolitana de Fortaleza.
“O laudo dela acusou morte por hemorragia. Anemia aguda, hemorragia, com perda de três litros de sangue”, conta Angela de Souza Lemos,irmã de Agnês,
Agnês pagou R$ 2 mil feito por Maria Nazaré Rodrigues da Silva, condenada mais de 20 anos atrás pelo crime de aborto. Nazaré recebeu pena de menos de três anos de cadeia e logo voltou a abortar. Desde a morte de Agnês, ela está foragida.
“Olha o estado em que se encontra essa casa e antes de acontecer o que aconteceu ela permanecia no mesmo estado”, observa o Francisco Auricélio Paiva, advogado da família da vítima, sobre o local onde os abortos aconteciam.
“Os instrumentais que são utilizados em abortos são objetos cirúrgicos e eles precisam ser submetidos a esterilização porque eles representam um grande risco se não forem processados seguramente. As pessoas que buscam as clínicas clandestinas correm um sério risco de vida, pois lá não a estrutura necessária para oferecer segurança na esterilização dos materiais”, afirma Terezinha Neide de Oliveira, funcionária do Centro de Esterilização.
Vítimas de complicações de aborto acabam tendo que ser socorridas pelo sistema de saúde público. “Temos abortos que são permitidos por lei
O caso de Agnês não é isolado, como explica a chefe da Santa Casa de Belém, Florentina do Socorro Balbi: “Nós temos aqueles abortos que são permitidos por lei. Então quando esse aborto não é permitido por lei, ela inicia o processo de aborto ou em casa ou em uma clínica clandestina, e posteriormente ela procura hospitais - normalmente da rede pública, para poder finalizar o que ela deve ter praticado. Às vezes, como a nossa região é uma região muito extensa, com estados distantes, às vezes a paciente tem que vir de barco para cidade, às vezes elas chegam em estados bem avançado de infecções, de problemas com hemorragia; às vezes a paciente, ela pode vir até a falecer. Fazemos em média uns 300 atendimentos-mês de pacientes com queixa de abortamento. É um índice muito alto”.
“Nós só podemos fazer o que está previsto na lei, e a lei prevê que o aborto só não é criminalizado em duas situações: estupro, a gravidez decorrente de estupro, ou quando há um risco materno inaceitavelmente alto de continuidade da gravidez”, explica o professor da Universidade Federal de Fortaleza.
Conhecemos uma clínica que é um verdadeiro feirão do aborto. Nenhuma outra clínica no Rio de Janeiro tem tanto movimento. Às seis e meia da manhã começam a chegar pais, irmãos, maridos, noivos, namorados - todos acompanhando as pacientes.
Reencontramos Ana Paula, a mulher de Bonsucesso que explicou à equipe como funciona a clínica. Mas não é Ana Paula quem dá o primeiro atendimento.
Sem saber que estava sendo gravada, a mulher de jaleco branco recebe o repórter Eduardo Faustini e uma produtora. Ela pede uma ultrassonografia e explica qual é a desculpa a ser dada, se o pedido de exame vier a ser questionado: “Se eles te perguntarem, diz que o médico te pediu a ultrassonografia porque sua menstruação está atrasada, é o que eu justifiquei aqui, amenorréia. Quando você terminar de fazer, dá uma ligadinha para mim e fala quanto tempo deu”.
Outra equipe do Fantástico volta à clinica e a cena se repete. “Nós vamos fazer a ultra e voltar rapidinho”, diz Faustini. “Deixa eu pegar um prontuário aqui”, responde a mulher. “Você está com quanto tempo?”, ela pergunta. Nos dois pedidos, o carimbo e o CRM não são de uma doutora, mas de um ginecologista e obstetra registrado no Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais. Ele também é médico da Polícia Militar daquele estado.
Falamos com Dr. Ronaldo José de Souza, que está de férias, fora do país. Ele se diz inocente e afirma que desconhece a clínica. O médico também afirma que vai procurar o CRM de Minais Gerais para esclarecer o que chama de uso indevido do nome e do registro profissional dele.
Em uma clínica no Rio de Janeiro, encontramos uma sala de espera está cheia. Uma mãe recebe uma receita e orientações de uma funcionária, como se fosse médica: “Você vai tomar um comprimido de seis em seis horas durante cinco dias. Ela não precisa porque ela está com pouquinho tempo; só em caso de sangramento”.
A mesma funcionária fala com o nosso produtor e diz que ali menor de idade só pode se submeter ao aborto com autorização dos pais.
“Só pode fazer com o pai ou a mãe, tem que trazer pai ou mãe para assinar o documento”, afirma a funcionária da clínica. Vem então a informação do preço diferenciado. O aborto feito em adolescente tem prioridade no atendimento e é bem mais caro.
Tentamos comprar Citotec em uma farmácia de Belém. “Preciso comprar um Citotec. A senhora sabe onde tem, a senhora vende? Como é que eu faço para conseguir? Eu preciso tomar”, pergunta a acompanhante.
“Só um minuto”, ela responde.
“Quem é, para você, é?”, pergunta
“É, sou eu mesma”, responde a acompanhante.
“Há quanto tempo está atrasado?”, continua o vendedor.
“Tem mais de um mês. Um mês e uns diazinhos”, ela diz.
“Coloca dois e toma dois. Dá quatro comprimidos”, orienta o vendedor.
“Quanto que custa? “Está R$ 150”,responde o vendedor.
O balconista se torna mais um médico instantâneo que coloca em risco a saúde da população.
“Tem que fazer relaxado, tá?”, explica o vendedor. Ele deixa o telefone para que possamos entrar em contato com ele no caso de alguma complicação.
As situações mostradas nessa reportagem vem se repetindo todos os dias em todo o Brasil.
Uma pesquisa do Instituto do Coração da Universidade de São Paulo levantou um número espantoso. Entre 1995 e 2007, a curetagem depois do procedimento de aborto foi a cirurgia mais realizada elo SUS: 3,1 milhões de registros, contra 1,8 milhão de cirurgias de correção de hérnia. A pesquisa não incluiu cirurgias cardíacas, partos e pequenas intervenções que não exigem internação.
Outra pesquisa, conduzida pela Universidade de Brasília, mostra que passa de cinco milhões o número de mulheres brasileiras que já abortaram.
“A pesquisa nacional de aborto, cobriu todo Brasil urbano, que são as capitais, e as grandes cidades, ou seja, ficou de fora o Brasil rural, porque não podíamos incluir mulheres analfabetas”, disse a antropóloga e professora da Universidade de Brasília, Debora Diniz.
“As pesquisadoras entraram na casa das mulheres, com uma urna secreta, as mulheres de 18 a 39 anos, elas recebiam uma cédula que constava de cinco perguntas, e uma delas é, ‘você já fez aborto?’, explicou Débora.
“O que nós sabemos é que uma mulher em cada cinco, aos 40 anos, fez aborto. Significam 5 milhões e 300 mil mulheres em algum momento da vida, já fizeram aborto. Metade delas usou medicamento, nós não sabemos que medicamento é esse; a outra metade, precisou ficar internada pra finalizar o aborto. O que isso significa? Um tremendo impacto na saúde pública brasileira. Quem é essa mulher que faz aborto? Ela é a mulher típica brasileira. Não há nada de particular na mulher que faz aborto”, explica a antropóloga.